Decifrando Flora

Nunca houve uma vilã como Flora. Você pode citar uma dúzia de personagens que Bette Davis fez no cinema americano nos anos 1940. Mas desmascarar Bette Davis era fácil. Antes de a atriz terminar o segundo cigarro do filme, o que acontecia mais ou menos com cinco minutos de projeção, toda a platéia já percebia o quanto de maldade seu personagem seria capaz de fazer

Nunca houve uma vilã como Flora. Você pode citar uma dúzia de personagens que Bette Davis fez no cinema americano nos anos 1940. Mas desmascarar Bette Davis era fácil. Antes de a atriz terminar o segundo cigarro do filme, o que acontecia mais ou menos com cinco minutos de projeção, toda a platéia já percebia o quanto de maldade seu personagem seria capaz de fazer.

Você pode se lembrar também de Odete Roitman, a vilã de todas as vilãs de novela. Mas Odete Roitman disse a que veio desde a primeira aparição de Beatriz Segall em ´Vale tudo´. Flora, não. Flora enganou o espectador durante 55 capítulos, bancando a injustiçada, a sofredora, a heroína. Só depois disso, ela passou a mostrar seu lado mau. E bota mau nisso.

Flora despreza o pai, rejeita a filha e mata, sem pensar duas vezes, quem atrapalhar a trajetória que traçou em busca de vingança. ´A favorita´, a novela dominada pelas maldades de Flora, precisava de uma grande atriz para dar credibilidade a uma personalidade tão dúbia e tão radical. E a encontrou em Patrícia Pillar, que, aos 44 anos, equilibrando seu rosto de anjo com os olhares perversos da personagem, realiza seu melhor trabalho em 24 anos.

Patrícia não gosta de dizer que é seu melhor trabalho. ´É o mais rico´, pondera. ´Quando li os primeiros capítulos, fiquei apreensiva. Não me parecia um personagem de novela. Flora é realista num certo sentido, mas tem um outro lado que chega muito perto da loucura. Ela diz uma coisa, mas a cabeça está em outro lugar. Está sempre raciocinando. É preciso muita concentração para interpretá-la´, afirma.

Experiência

Acompanhando, diariamente, os muitos detalhes com que Patrícia constrói a sua Flora, é difícil partilhar com ela a desconfiança com que encara cada novo personagem. ´Eu não tenho escola´, justifica.´Muitas vezes, no trabalho, senti falta de ferramentas´.Também não é assim...

Na pré-adolescência, Patrícia cursou durante oito meses as aulas do Tablado, a mais tradicional das escolas de teatro cariocas. Depois, quando desinteressou-se do curso de Psiquiatria, para o qual chegou a estudar para o vestibular, e da faculdade de Comunicação, que chegou a cursar, fez parte da primeira turma da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL).

No seu currículo, aparecem ainda cursos avulsos com Aderbal Freire Filho, Rubens Correa e Juliana Carneiro da Cunha. Acabou estreando profissionalmente com o diretor Hamilton Vaz Pereira, um dos criadores do Asdrubal Trouxe o Trombone, logo depois de o grupo ser desfeito. Perto do currículo das caras novas que todo dia aparecem na TV, Patrícia Pillar fez o equivalente a um curso de pós-graduação. Um mestrado em interpretação. Um MBA de artes cênicas.

Experiência

Mesmo assim, a atriz criou um arsenal próprio de instrumentos do qual lança mão em cada trabalho. ´Sou estudiosa´, resume ela, antes de descrever, passo a passo, como constrói um personagem de novela. ´Para começar, leio todos os primeiros capítulos. Geralmente, a gente começa uma novela com 16 ou 18 capítulos já escritos. Leio tudo.

Assim, fico sabendo do que o autor está falando. Então, estudo o meu personagem, qual é a função dele nessa história. Depois, vem a parte que eu mais gosto. Tento visualizar o personagem´, ensina.

Laboratório

No caso de Flora, Patrícia a visualizou visitando o presídio Talavera Bruce. ´Flora tinha passado 18 anos na prisão, e eu nunca tinha visto uma presidiária. Sempre vou em busca de uma coisa que sei que não vou encontrar. O que eu preciso está dentro de mim. Mas só consigo pôr para fora quando toda a parte racional está resolvida´, acredita.

A estrela, que não é muito de freqüentar academias, nem de fazer esportes, que é uma pessoa mais, digamos, contemplativa, resolveu ter uma atividade física para enfrentar a Flora. ´Fiz aeróbica e box´. Por quê? Flora é atlética? ´Não sei, mas essas atividades ativaram coisas no meu corpo que foram importantes para mim´.

Observadora

Outros detalhes insuspeitos foram importantes para Patrícia. O jeito de Flora podia estar na foto de um tigre que ela viu numa revista ou num videoclipe. Na cabeça de Patrícia Pillar, Flora tem um pouco de Amy Winehouse cantando ´Love is a losing game´.

´Novela é uma gincana. É uma quantidade absurda de cenas para gravar praticamente todos os dias´. Mas ela não reclama, nem esconde um certo orgulho com o resultado: ´É tudo tão imponderável, mas, às vezes, você está em paz com seu processo. Sinto que a Flora deu um caldo legal´.

As andanças de Patrícia

Patrícia Pillar nasceu em Brasília no ano emblemático de 1964, o que não quer dizer nada. Saiu da capital com 1 ano e meio de idade. Morou ainda em Vitória e em Santos antes de se estabelecer, definitivamente, no Rio. São andanças comuns a filhos de oficiais da Marinha. Ela não criou raízes.´Sou desenturmada´, abrevia.

Ser desenturmada é o que a faz explicar também porque largou o Tablado depois de apenas oito meses. Mas na televisão não se pode dizer que a atriz continue desenturmada. Assim como Malu Mader faz parte da trupe de Gilberto Braga, e Vera Fischer, da de Glória Perez, Patrícia é da turma de Benedito Ruy Barbosa.

No entanto, a atriz começou na TV numa função bem diferente. Seu primeiro trabalho no veículo foi em 1984, como apresentadora do programa ´FM TV´ (com textos do redator, o hoje imortal Paulo Coelho), da extinta Rede Manchete que exibia clipes musicais.

Devargazinho, Patrícia construiu uma carreira impecável na televisão. Depois de ´Roque Santeiro´ (1985) (foram quatro novelas (a primeira versão de ´Sinhá Moça´, ´Brega & chique´, ´Vida nova´ e ´Rainha da sucata´) em cinco anos até conquistar seu primeiro papel de protagonista em ´Salomé´, uma produção mal-sucedida de 1991, exibida às seis da tarde.

O cinema já tinha virado uma paixão, mas ela continuava em novelas e minisséries. Fez ´As noivas de Copacabana´, ´Renascer´, ´Pátria minha´... Quando podia, passava um tempo nos sets de filmagem: ´Para viver um grande amor´, ´O monge e a filha do carrasco´,´Menino maluquinho´...

Depois de rejeitar proposta de Luiz Fernando Carvalho para ser a protagonista de uma novela, apareceu a oportunidade entrar para ´O quatrilho´, de Bruno Barreto. Com este filme Patrícia pode se orgulhar de ter feito uma das primeiras produções do Ciclo da Retomada a ultrapassar a barreira de um milhão de espectadores. Na corrida pelo Oscar, ´O quatrilho´ quase chegou lá na categoria melhor filme estrangeiro.

A partir daí, a atriz passou a equilibrar trabalhos: ´O rei do gado´, na TV; ´O noviço rebelde´ e ´Amor & Cia.´, no cinema; ´Mulher´, ´Um anjo caiu do céu´ e ´Cabocla´, na TV; ´Se eu fosse você´ e ´Zuzu Angel´, no cinema. Até chegar à Flora.

O ritmo do cinema é mais lento. Patrícia comprovou isso na estréia como diretora. Levou dois anos e meio com ´Waldick Soriano, sempre no meu coração´. Com o fim da novela, quer lançá-lo na telona. ´Vai ser um lançamentozinho´, define.

Artur Xexéo
Agência O Globo
Novembro de 2008
 

Entrevistas Copyright © 2011